Gratidão

Imagem da pessoa expressando gratidão

Gratidão: quando o coração aprende a lembrar

Há um gesto invisível que salva o ser humano do desamparo: a gratidão. Não aquela aprendida por convenção social, que agradece com os lábios, mas a gratidão que pulsa do íntimo, quando o ser reconhece que algo bom lhe foi dado sem exigência de retorno. É memória viva do bem recebido. É o corpo dizendo sim à vida, apesar de tudo.

Etimologia: um nome antigo para um sentimento essencial

A palavra "gratidão" deriva do latim gratia, que significa graça, favor, benevolência. Está ligada ao termo gratus, que quer dizer agradável, bem-vindo, digno de reconhecimento. A raiz é a mesma que forma graça - aquilo que excede, que vem além do merecimento. Gratidão, assim, carrega em sua essência o sabor do imerecido. Não se trata de dívida, mas de reconhecimento.

O cérebro que agradece: o que a ciência nos revela

A neurociência vem confirmando o que a experiência humana já sabia em silêncio: ser grato faz bem. Estudos com neuroimagem mostram que a gratidão ativa áreas cerebrais ligadas à empatia, ao prazer e à regulação emocional - como o córtex pré-frontal medial, o giro do cíngulo anterior, a amígdala cerebral e o núcleo accumbens. São as mesmas áreas ligadas ao sistema de recompensa, à tomada de decisão moral e à memória afetiva.

Um estudo conduzido por Joshua Brown e Joel Wong, da Indiana University (2016), comprovou que praticar gratidão de forma sistemática (como escrever cartas de agradecimento semanais) altera a atividade cerebral mesmo três meses após o exercício. Os participantes apresentaram melhora significativa nos níveis de depressão, ansiedade e bem-estar geral.

Outro estudo, de Zahn et al. (2009), publicado na revista NeuroImage, demonstrou que expressar gratidão ativa fortemente o córtex pré-frontal ventromedial, área responsável pela percepção do valor dos outros e de si mesmo. O cérebro, ao agradecer, se reorganiza. Ele "se reconcilia com o mundo", diria um poeta.

Os benefícios da gratidão comprovados pela ciência:

  • Aumenta os níveis de serotonina e dopamina, neurotransmissores associados ao prazer e à motivação.

  • Reduz a atividade da amígdala, estrutura relacionada ao medo e à agressividade.

  • Melhora o sono, segundo estudo publicado no Journal of Psychosomatic Research (2009).

  • Aumenta a empatia, reduz comportamentos agressivos e fortalece vínculos afetivos (Emmons & McCullough, 2003).

  • Favorece o sistema imunológico e reduz sintomas inflamatórios.

A gratidão na visão psicanalítica

Na psicanálise, gratidão não é uma emoção superficial. É uma conquista psíquica. Melanie Klein foi a primeira a explorar esse afeto em profundidade. Para ela, a gratidão nasce quando o sujeito consegue integrar amor e ódio por um mesmo objeto - por exemplo, quando o bebê percebe que a mãe que frustra é também a que alimenta. O reconhecimento do “objeto bom” é o primeiro esboço da gratidão verdadeira.

“A gratidão surge da percepção de que o objeto bom sobrevive aos nossos ataques e continua a nos nutrir.” (Melanie Klein, Inveja e Gratidão, 1957)

Isso implica maturidade psíquica: reconhecer que o outro não é perfeito, mas é valioso; que nem tudo foi como queríamos, mas muito nos foi dado. A gratidão, assim, é também reparação: um desejo de preservar, de agradecer não com palavras, mas com cuidado. Ela é oposta à inveja, que deseja destruir aquilo que o outro tem de bom.

Winnicott, por sua vez, diria que a gratidão é fruto de um ambiente suficientemente bom. Quando o bebê é acolhido, sustentado, compreendido, ele desenvolve a confiança básica no mundo. Mais tarde, essa confiança se expressará na forma de gratidão: uma confiança que permite reconhecer o valor da alteridade.

Na clínica, a ausência de gratidão costuma apontar para traumas precoces, falhas de cuidado, experiências não integradas. O sujeito tomado pela falta, pela crítica constante, pela expectativa de perfeição - esse sujeito não consegue agradecer. A gratidão é, então, um sinal clínico de elaboração, de integração psíquica, de um ego que começa a sustentar a complexidade da vida.

Filosofia da gratidão: o lugar do humano diante do inesperado

Ser grato é um ato filosófico, no sentido mais puro do termo: é reconhecer o que nos excede. A gratidão nos coloca diante de nossa interdependência — o outro me afeta, me toca, me transforma. Não sou ilha, não sou dono de tudo que recebo.

A gratidão é o que resgata o sentido no meio da rotina. É o instante em que o sujeito se dá conta de que a vida não lhe deve nada — e mesmo assim, algo lhe foi ofertado. É o reconhecimento do dom, do acaso luminoso, do gesto alheio que nos alcança sem cálculo.

Nietzsche, apesar de crítico feroz da moral tradicional, fala da gratidão como manifestação do espírito livre:

“A alma nobre tem gratidão como uma de suas qualidades essenciais: é a sua maneira de responder ao que é bom.” (Além do bem e do mal, 1886)

A gratidão poética: quando o ser toca a realidade

Gratidão verdadeira não é silêncio, mas canto interior. Ela não exige grandes palavras nem gestos performáticos. Ela se manifesta num olhar que reconhece, num gesto que cuida, numa memória que permanece. Gratidão é o contrário do esquecimento. É a arte de lembrar com o coração.

Quem é grato, não é ingênuo. Mas sabe que a vida, apesar de suas sombras, ainda oferece luzes inesperadas. A gratidão não nega o sofrimento, mas o atravessa. Ela não é alegria fácil, mas sabedoria emocional. É o afeto de quem aprendeu a acolher o que tem — sem perder o desejo, mas sem se curvar à falta.

Referências bibliográficas

  • Emmons, R. A., & McCullough, M. E. (2003). Counting Blessings Versus Burdens: An Experimental Investigation of Gratitude and Subjective Well-Being in Daily Life. Journal of Personality and Social Psychology, 84(2), 377–389.

  • Wong, J., & Brown, J. W. (2016). Does gratitude writing improve the mental health of psychotherapy clients? Evidence from a randomized controlled trial. Psychotherapy Research, Indiana University.

  • Zahn, R. et al. (2009). The neural basis of human social values: Evidence from functional MRI. NeuroImage, 47(3), 972–978.

  • Klein, M. (1957). Inveja e Gratidão. Rio de Janeiro: Imago.

  • Nietzsche, F. (1886). Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.

  • Wood, A. M., Joseph, S., & Maltby, J. (2009). Gratitude uniquely predicts satisfaction with life: Incremental validity above the domains and facets of the Five Factor Model. Personality and Individual Differences, 46(4), 443–447.

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