Culpa e Vergonha - Estudos Sobre o Superego
A etimologia nos ilumina. A palavra “culpa” vem do latim culpa, que significa “falta”, “erro”, “falha”. Já “vergonha” deriva do latim verecundia, que está ligada a “temor respeitoso”, pudor ou recato. Ambas emergem da tensão entre o desejo e a interdição, entre o princípio do prazer e o da realidade. Mas enquanto a culpa exige expiação diante de uma autoridade interiorizada, a vergonha prefere o silêncio e o ocultamento - ela não quer perdão, quer desaparecer dos olhos do outro.
Freud, em O Eu e o Isso (1923), nos oferece a imagem do Superego como herdeiro do Complexo de Édipo. Após a dissolução deste complexo, os desejos hostis contra o pai são reprimidos e, em seu lugar, erige-se uma instância que se identifica com o pai, agora introjetado, tornando-se juiz e carrasco. A culpa, nesse contexto, é o sofrimento psíquico causado por essa instância vigilante, que julga até mesmo os pensamentos e intenções mais recônditos. Freud observa que a culpa inconsciente, mesmo sem ato cometido, pode se apresentar como uma necessidade de punição, levando o sujeito a se colocar repetidamente em situações de fracasso, desvalorização e dor.
Já a vergonha, embora menos explorada por Freud, foi profundamente analisada por outros pensadores. Sartre, em O Ser e o Nada (1943), afirma que a vergonha é sempre vergonha diante de alguém. Ela nasce do olhar do outro que me reduz a objeto, que me fixa em uma imagem que não escolhi. É a angústia de ser visto em minha nudez simbólica. Diferente da culpa, que é voltada para o interior e tem relação com normas morais internalizadas, a vergonha está ligada ao campo do desejo e da imagem, sendo uma ferida narcísica, uma queda do ideal.
Tomemos o caso clínico de H., um homem de 38 anos, que buscava análise devido à sensação constante de insuficiência. Era um sujeito aparentemente bem-sucedido, mas tomado por um sentimento de inadequação sempre que se via diante de figuras de autoridade. Ao longo do processo analítico, revelou que, na infância, era constantemente comparado ao irmão mais velho, exaltado como exemplo de inteligência e comportamento. A vergonha se inscreveu no corpo de H. como um traço de identidade. Ele não ousava desejar o próprio desejo, apenas desejava corresponder à expectativa alheia. Mais que culpa pelos próprios atos, sua dor era a de não ser suficiente - uma vergonha que o acompanhava como sombra.
Outro exemplo, no polo da culpa, nos é dado pela análise de M., mulher de 55 anos, que carregava desde a juventude o peso de ter escolhido seguir carreira artística contra a vontade do pai. Após sua morte, passou a desenvolver sintomas depressivos, somatizações e bloqueios criativos. Em sua fala, emergia a imagem do pai como figura severa e sacrificada. A análise revelou a introjeção dessa figura como Superego rígido, que condenava silenciosamente sua escolha. M. não podia criar sem pagar o preço da culpa.
Donald Winnicott, em seu trabalho sobre o desenvolvimento emocional primitivo, aponta que a culpa é um sinal de amadurecimento. Surge quando a criança, após destruir simbolicamente o objeto amado em fantasia, deseja repará-lo. A capacidade de sentir culpa está ligada, portanto, à possibilidade de amar e reparar, e não apenas de se submeter a uma autoridade punitiva. Já a vergonha, para autores como Silvan Tomkins e posteriormente Brené Brown, está ligada à crença de que há algo essencialmente errado com o próprio ser, não apenas com o que se faz. Ela mina a autoestima e o senso de pertencimento, sendo um afeto mais paralisante que a culpa.
A psicanálise lacaniana propõe ainda outra leitura. Lacan relaciona a culpa ao desejo e à castração. Em seu Seminário 7, "A Ética da Psicanálise", ele aponta que a verdadeira culpa surge quando o sujeito trai seu desejo. Não se trata apenas de transgredir regras, mas de se alienar do que o move no mais íntimo. A vergonha, nesse mesmo campo, pode ser vista como o retorno do real no campo do imaginário - um afeto que denuncia o rasgo entre a imagem idealizada de si e o que escapa ao controle.
Num tempo como o nosso, marcado pela exposição constante e pela idealização de imagens perfeitas nas redes sociais, a vergonha ganha contornos ainda mais devastadores. Muitos sujeitos vivem sob o império de um Superego tirânico que os obriga a performar felicidade, sucesso e virtude. Quando falham, não apenas sentem culpa, mas se envergonham por não serem aquilo que jamais poderiam ter sido.
A travessia da culpa e da vergonha passa pelo reconhecimento da própria humanidade. Implica aceitar o inacabado, o ambíguo, o contraditório. Requer um trabalho analítico capaz de fazer o sujeito nomear seu desejo, reconstituir seu lugar simbólico e, quem sabe, perdoar-se - não como ato moral, mas como gesto ético de cuidado de si.
Referências bibliográficas:
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Freud, S. (1923). O Eu e o Isso. Obras Completas, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
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Freud, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. Obras Completas, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
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Lacan, J. (1959-60). O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
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Sartre, J.-P. (1943). O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
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Winnicott, D.W. (1963). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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Brown, B. (2012). A Coragem de Ser Imperfeito. Rio de Janeiro: Sextante.
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Tomkins, S. (1963). Affect Imagery Consciousness. Springer Publishing Company.
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