Transferência

Imagem de uma pessoa fazendo transferência para o seu psicanalista

TRANSFERÊNCIA NA PSICANÁLISE: UM CONCEITO FUNDAMENTAL

Etimologia:

  • Transferência: do latim transferre, composto de trans- (além, para o outro lado) e ferre (levar, carregar). Literalmente, “carregar para outro lugar”.

A transferência é um dos pilares da teoria e da clínica psicanalítica. Trata-se de um fenômeno central, descrito inicialmente por Sigmund Freud em 1895, mas sistematizado em sua complexidade a partir de 1905, sobretudo no caso clínico de Dora ("Fragmento da análise de um caso de histeria"). É através da transferência que o passado irrompe no presente da análise. O paciente desloca para a figura do analista os afetos, fantasias, desejos, medos e expectativas que foram originalmente dirigidos a figuras significativas de sua infância - sobretudo os pais.

O termo “transferência” vem do latim trans-ferre, que significa literalmente “levar através”, “transportar”. No campo psicanalítico, significa transportar sentimentos de uma relação passada para uma relação atual. Freud percebeu que, ao longo do tratamento, os pacientes começavam a reagir a ele como se ele fosse o pai, a mãe ou outro personagem relevante de sua história psíquica. Não se trata de simples repetição, mas de uma atualização subjetiva carregada de sentido.

Exemplo prático: uma mulher em análise, que teve um pai autoritário e emocionalmente ausente, começa a reagir ao analista com irritação e frieza cada vez que ele silencia. Ela se sente ignorada, não ouvida, e reage com acusações veladas. Objetivamente, o analista nada fez - mas subjetivamente, tornou-se suporte de uma cena psíquica antiga que ainda clama por elaboração. Essa é a transferência: o passado retorna mascarado de presente.

Freud, em seu texto de 1912, "A dinâmica da transferência" (Zur Dynamik der Übertragung), desenvolve com precisão essa ideia: a transferência é inevitável, e longe de ser um obstáculo à análise, é justamente o terreno onde o inconsciente se mostra com maior clareza. O que antes se manifestava em sintomas, passa agora a se expressar no vínculo com o analista. A análise só é possível porque o sujeito repete, em ato, suas fixações inconscientes.

Transferência não é apenas repetição. É atualização subjetiva. É repetição com desejo. Como aponta Lacan, em seu Seminário I (1953-54), a transferência é a "resistência por excelência". O paciente não resiste ao tratamento "apesar da transferência", mas através dela. A transferência não é uma ponte que liga o sujeito ao passado, mas um espelho no qual ele repete o mesmo gesto esperando um novo desfecho.

O fenômeno da transferência permite a reedição das marcas psíquicas originárias num novo cenário - o da escuta analítica. No entanto, ela também pode se tornar resistência quando impede que o analisando se aproxime de certos conteúdos inconscientes. Por isso, sua interpretação é o trabalho clínico por excelência. Interpretar a transferência é interpretá-la no momento em que ela acontece, sem quebrá-la, sem explicá-la de forma didática, mas devolvendo ao sujeito o enigma do seu próprio desejo.

A dimensão filosófica da transferência encontra eco em Platão. No Banquete, Sócrates escuta Alcibíades confessar sua paixão e projeção sobre o mestre. O amor transferencial já se faz presente. A figura do mestre encarnando um Ideal, desejado e temido, que escuta sem ceder. A transferência, nesse sentido, é também erótica — não apenas sexual, mas do Eros como impulso de ligação, de busca do saber. O analista ocupa esse lugar de “sujeito suposto saber”, como define Lacan no Seminário XI (1964).

A contratransferência, conceito desenvolvido posteriormente por psicanalistas como Paula Heimann e Melanie Klein, refere-se aos sentimentos que o analista desenvolve em resposta à transferência do paciente. Embora Freud a tenha visto inicialmente como um obstáculo (1920), a contratransferência passou a ser considerada uma importante ferramenta clínica, pois os afetos que o analista sente podem ser usados como bússola interpretativa.

Pesquisas contemporâneas sustentam a importância da transferência como fenômeno terapêutico. Um estudo da APA (American Psychological Association) publicado em 2011, intitulado The Role of Transference in Psychodynamic Therapy, mostra que a interpretação transferencial está associada a melhores desfechos clínicos em casos de depressão, ansiedade e transtornos de personalidade. Outro artigo relevante, de Levy et al. (2006), “Psychodynamic treatments for personality disorders: A meta-analysis”, confirma a eficácia de intervenções que trabalham diretamente com o manejo da transferência.

A transferência, portanto, não é um mero efeito colateral do processo analítico, mas a própria via de acesso ao inconsciente. Sem ela, não há possibilidade de elaboração. Com ela, o sujeito pode fazer da repetição uma via de transformação. O que antes era destino cego, pode tornar-se escolha. A análise é o lugar onde a repetição encontra a linguagem - e nela, o sujeito pode enfim dizer de outro modo o que, até então, apenas se repetia.

Referências bibliográficas:

  • Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7.

  • Freud, S. (1912). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira, v. 12.

  • Freud, S. (1915). Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira, v. 12.

  • Lacan, J. (1954). Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Lacan, J. (1964). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Heimann, P. (1950). On Counter-Transference. International Journal of Psycho-Analysis, 31, 81–84.

  • Levy, K. N., et al. (2006). Psychodynamic treatments for personality disorders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 132(4), 531–542.

  • APA (2011). The Role of Transference in Psychodynamic Therapy. American Psychological Association.

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